Docência e consciência cultural

14/08/2014 16:32

Maria Isabel Petry Kehrwald1

 

Resumo

Neste texto apresento questionamentos pessoais e aspectos referentes à docência em artes visuais. Abordo a arte como prática social, e o ensino da arte como um fator de fomento à compreensão da cultura visual e da importância da educação do olhar.

 

 

Questionamentos

Questionar-se sobre "quem eu sou?" como me tornei no que sou e o porque de certas escolhas pessoais, é reportar-se à idéia de identidade(s) como construções singulares tramadas ao longo da vida, alimentadas pelas vivências, experiências, frustrações, alegrias e interações cotidianas. É pensar no processo pelo qual um sujeito constrói um saber cultural, uma personalidade cultural que irá direcionar sua compreensão de mundo. É pensar sobre a forma como irá estabelecer relações e intervenções nos espaços em que convive. Os processos pessoais de revisitação de procedimentos são sempre salutares para entender os conceitos que defendemos, as causas que abraçamos e os fazeres pedagógicos que adotamos, por esse motivo é importante a retomada e a reflexão constante sobre nosso trabalho, nosso modo de pensar e agir.

 

Constatações

Educadores de todas as áreas de conhecimento vivem um especial momento de incertezas docentes, uma vez que são convocados a contribuir com as discussões e melhorias de todas as mazelas cotidianas que afetam os educandos: desde aspectos relativos à violência em seus variados formatos, até as doenças do corpo e da alma; desde a necessidade de suprir a falta de afeto e cuidados, até o desinteresse pelo estudo; do interesse desmedido pelo consumo e pelos

aparatos virtuais à apatia; da exclusão cultural e emocional à dificuldade de apropriar-se de saberes necessários à vida em comunidade. Nunca, como nesta década, estivemos tão vulneráveis ao que ocorre fora da escola, principalmente o que acontece no mundo virtual, onipresença concreta e instigante, ao simples toque de uma tecla.

Estas constatações nos levam a defender que é preciso repensar constantemente as funções e responsabilidades do professor, assumindo que o sistema de ensino atual é uma entidade diferente do que era há 10 ou 20 anos atrás. É também um convite a refletir a respeito do compromisso social de todos quantos defendem uma educação centrada na pedagogia contemporânea, compreendida, segundo Giroux (1999), como uma prática de produção de conhecimentos, identidades e desejos. Alinha-se, portanto, à pedagogia crítica e à perspectiva sócio-cultural. É uma produção de sentidos. Não se trata de reproduzir o que está posto, mas de criar espaços para a autoria, a diversidade, a alteridade, o singular e o interpretativo, entendendo-se aí as ações tanto de professores quanto de alunos.

As artes visuais, devido a sua característica de incentivo ao processo criativo e todo o espectro de ações e reflexões que promove, contribui fortemente para ampliar a consciência do protagonismo e do coletivo.

É nesta direção que nos aponta Hernández (2000), ao defender a complexidade, a dúvida e a problematização como campos favorecedores de uma atitude reconstrutiva, ou seja, de uma autoconsciência da própria experiência em relação às obras de arte, aos artefatos, aos fazeres de cada um, ou aos problemas que são trabalhados em sala de aula. É pensar não só no como se faz arte, mas, principalmente, no porque da arte, a fim de instigar o confronto de ideias e a criticidade.

Não se pode pensar, planejar, o ensino da arte hoje, com o mesmo entendimento de épocas passadas. O “desenhar bem” é sempre uma habilidade a preservar, mas não pode ser um passaporte para a aula. Todos tem direito a se expressar conforme suas condições e possibilidades, independente de como o fazem. O professor criativo buscará abordagens pedagógicas que respeitem

trajetórias individuais, mas, sobretudo, que ampliem a compreensão das linguagens da arte e sua importância no processo civilizatório.

Nossas incertezas são nossos instrumentos permanentes de reflexão e são elas que conduzem as mudanças, permitindo não só compreender, mas interferir no processo educativo.

É importante ressaltar que o monitoramento do processo criativo e o controle do imaginário pelas várias instâncias - familiares, políticas, comunitárias, escolares, culturais e midiáticas -, produzem dispositivos que impedem as manifestações socialmente divergentes. São procedimentos que fazem parte de um currículo oculto, que manipula, nega e silencia percepções, emoções e conhecimentos. São ações subjacentes muitas vezes sutis, dirigidas a determinadas etnias ou grupos, com algum tipo de dificuldade ou necessidades especiais. Todos nós temos exemplos a contar sobre silenciamentos, risos debochados e desrespeito às manifestações expressivas de alunos e mesmo de nós próprios. O bulling é também um exemplo desta exclusão.

Outro agente manipulador que é preciso levar em conta pelo que afeta crianças e jovens é a mídia e seus derivados - TV, internet, jogos virtuais, redes sociais, telefones, cinema, rádio, revistas, jornais, materiais publicitários, etc..., cuja influência, boa ou má, não podemos impedir mas, podemos reverter, usando-a em favor do nosso projeto pedagógico, focando as ações na compreensão crítica da cultura visual e na educação do olhar.

Há um espaço entre o endereçamento e a resposta do receptor que está em aberto nos aparatos midiáticos e, é nele que podemos intervir, questionando, confrontando, comparando e analisando criticamente. Nesta mesma perspectiva há contribuições importantes dos teóricos dos estudos da Cultura Visual e de Pillar (1999), no que se refere à necessidade de uma educação estética centrada na visualidade.

 

Arte como prática social

A concepção que temos de arte delimita nossas mediações pedagógicas e desenha (no sentido de designo) o que se mostra e o que oculta, o que se fala e o

que se cala, indicando enfim, os percursos que trilhamos. Ao entender arte como prática social, como experiência direcionada, é com esta concepção que me autorizo a construir um projeto pedagógico que contemple a pluralidade, a interculturalidade, o diverso e os fazeres dos vários grupos que compõem o nosso coletivo. Desta forma, o estudo da arte irá abranger desde as artesanias e práticas populares até a arte universalmente legitimada, perpassada pelas experimentações tradicionais do campo da linguagem artística como desenho, colagem, pintura, escultura, processos de impressão de imagens e produções mais contemporâneas como as que utilizam programas de computador e dispositivos eletrônicos e virtuais. O somatório dessas atividades irão constituir um saber artístico e estético fundamental para a valorização da arte e da cultura.

Ana Mae Barbosa (2002, p.14) ao enfatizar a importância do professor como provocador de atitudes cidadãs de fruidores da cultura salienta que

 

"os poderes públicos além de reservarem um lugar para a Arte no currículo e se preocuparem em como a Arte é ensinada, precisam propiciar meios para que os professores desenvolvam a capacidade de compreender, conceber e fruir Arte. Sem a experiência do prazer da arte, nenhuma teoria de Arte-Educação será reconstrutora".

 

Sobre este aspecto, percebe-se que poucos professores de arte se nutrem esteticamente dos espaços da arte, alegando, ora falta de tempo, ora dificuldades financeiras. Buscam referenciais em revistas, livros, imagens impressas via xerox, internet etc... sem contato com artistas, artesãos, atores, bailarinos, escritores e suas obras, fato que empobrece a construção de sentidos e de conhecimento, uma vez que é estabelecendo relações que tecemos nossas redes de saberes. Quanto mais ricas e diversas estas inter-relações ou, estes intertextos, mais denso, amplo e significativo serão os conhecimentos.

A sabedoria popular diz que uma coisa leva a outra, que leva a outra, e mais outra, numa costura interminável, tal qual uma colcha de retalhos ou de fuxicos, elemento do artesanato popular feito com pequenos pedaços de tecido em

formato arredondado. Os fuxicos, costurados uns aos outros, compõem um todo que, no entanto, preserva as particularidades de cada elemento tecido.

Cito essa metáfora - a colcha de fuxico, que sempre pode ser ampliada ao incorporar mais um elemento -, para lembrar que a educação é tessitura de processos compartilhados sempre incompletos, e de experiências que nos habitam, que explicam nossas escolhas e ressignificam nossas ações. Nunca estamos sós, nos acompanham nossas vivências e aqueles que nos ajudam a pensar, a ponderar, a transformar, - os teóricos em que nos apoiamos, os nossos colegas de profissão e os nossos alunos.

Certeau (1990), afirma que somos locatários de idéias e que estamos continuamente citando-nos, o que de certa forma nos reporta à metáfora do fuxico. Isso nos auxilia a entender que pedaços de saberes se costuram uns aos outros para que possamos dar sentido à trajetória que trilhamos e que escolhemos como nosso chão, isto é: o ofício de professor e de professora.

 

BIBLIOGRAFIA

BARBOSA, Ana Mae. (org.). Inquietações e mudanças no ensino da arte. São Paulo: Cortez, 2002.

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes do fazer. Petrópolis, RJ: Vozes, 1990.

GIROUX, Henry A. Cruzando as fronteiras do discurso educacional: novas políticas em educação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1999.

HERNÁNDEZ, Fernando. Cultura visual, mudança educativa e projeto de trabalho. Porto Alegre: Artes Médicas, 2000.

 

1 Mestre e Doutora em Educação/FACED/UFRGS; ex diretora e professora da Fundação Municipal de Artes de Montenegro-Fundarte/RS; membro do GEARTE/UFRGS.